Crime, Violência e Impunidade




Por Sérgio Adorno e Wânia Pasinato

Em agosto de 2000, o jornalista Pimenta das Neves, ex-editor chefe do jornal O Estado de S. Paulo, assassinou sua namorada em um haras, situado em Ibiúna a 70km da capital do estado de São Paulo. Segundo o que foi possível apurar, o móvel do crime foi passional. A vítima foi alvejada com tiros disparados de arma de fogo, sem qualquer possibilidade de defesa. Réu confesso, foi preso. Permaneceu nessa condição por pouco tempo, uma vez que logrou obter, junto à autoridade judiciária, o benefício de responder em liberdade. Julgado, foi condenado a 19 anos de pena de reclusão. Foi-lhe facultado, entretanto, aguardar em liberdade o julgamento de recurso impetrado junto à instância judiciária superior. O julgamento do recurso deve durar anos. O condenado, por sua vez, ao completar 70 anos, desfrutará de benefícios como o cumprimento parcial da sentença. Na prática, suspeita-se que a sentença jamais será executada e o jornalista, apesar de condenado, não cumprirá a pena a que foi submetido.

Aproveitando a conjuntura que repercutiu na mídia impressa e eletrônica o julgamento do jornalista, a Rede Globo de TV resolveu fazer um experimento. Verificou que, no mesmo dia em que o jornalista havia assassinado sua ex-namorada, haviam sido registrados no município de São Paulo 26 homicídios. Abertos os inquéritos correspondentes, 22 foram arquivados. Entre os quatro restantes, apenas 2 réus haviam sido condenados, pois os outros dois haviam morrido no curso do processo penal. Trata-se, por conseguinte, de uma situação mais habitual do que talvez se possa imaginar. Inúmeros outros casos, como o do jornalista Pimenta das Neves, poderiam ser invocados, já que corriqueiros no cotidiano das delegacias e postos policiais.

Não sem razão, é corrente o sentimento coletivo de que os crimes cresceram, tornaram-se mais violentos, porém não são punidos. É compreensível que esse sentimento suscite, em não poucos segmentos da sociedade, obsessivos desejos punitivos, que compreendem desde a reforma das leis penais no sentido de suspender benefícios, que hoje parecem proteger os criminosos, até a aplicação de medidas como a pena de morte ou a tolerância para com execuções sumárias de suspeitos de haver cometido crimes.

Uma pesquisa em andamento no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV/Cepid/USP) pretendeu justamente responder a tais inquietações presentes no debate e na opinião pública. Empiricamente a pesquisa consiste em estudo sociológico da impunidade penal no município de S. Paulo 1. Trata-se de caracterizar, entre um universo de crimes determinados, a desistência de aplicação de sanções penais. Busca-se isolar possíveis circunstâncias e/ou fatores que favorecem a distribuição seletiva da punição, bem como identificar as possíveis causas (ou conjunto associado de causas) que a explicitam.

A pesquisa avalia a hipótese segundo a qual elevada taxa de impunidade compromete a crença dos cidadãos nas instituições encarregadas de aplicar lei e ordem. Para tanto, está baseada na observação de ocorrências policiais no fluxo do sistema de justiça criminal (institutional follow-up), segundo o método longitudinal. Acompanha o movimento dos crimes em três fases: 1 – policial (do registro da ocorrência ao inquérito policial); 2 – judicial (do inquérito ao processo penal); e 3 – desfecho processual com a decretação da sentença judicial. Na primeira fase (já concluída), o universo empírico compreendeu 344.767 boletins de ocorrência policial (BOS) registrados em 16 delegacias que compõem a 3ª. Seccional de Polícia, situada na região noroeste do município de S. Paulo, no período de janeiro de 1991 a dezembro de 1997. Compreendem crimes violentos (homicídio, roubo, roubo seguido de morte, estupro e tráfico de drogas) e não-violentos (furto, furto qualificado e consumo de drogas). Apenas 5,48% desses registros converteram-se em inquérito policial. Essa proporção é maior (8,14%) para crimes violentos, conforme dados contidos na tabela abaixo. E, entre os crimes violentos, as maiores proporções de registros convertidos em inquéritos correspondem ao tráfico de drogas (92,71%), em geral resultado de flagrante; aos latrocínios, isto é, roubos seguidos de morte (67,20%) e aos homicídios (60,13%).

Total de Boletins de Ocorrência Registrados, total de boletins de ocorrência (BOS) convertidos em Inquéritos Policiais distribuídos segundo o grupo de classificação e a natureza do crime






Grupo/natureza

Total de Bos

Total Bos Convertidos

%

Crimes não violentos

211832

8216

3,88

Furto

202632

6553

3,23

Furto qualificado

7811

414

5,30

Uso de entorpecentes

1389

1249

89,92

Crimes violentos

117418

9553

8,14

Estupro

1630

364

22,33

Homicídio

4913

2954

60,13

Roubo

109831

5362

4,88

Latrocínio

372

250

67,20

Tráfico de entorpecentes

672

623

92,71

Ocorrências não criminais

15517

1139

7,34

Encontro de cadáver

167

105

62,87

Morte a esclarecer

1618

500

30,90

Resistência seguida de Morte

82

68

82,93

Verificação de óbito

13650

466

3,41

Total

344767

18908

5,48







Fonte: Livros de registro de boletins de ocorrência e livros de registro de inquérito policial – 3ª Seccional/ SSP-SP
Pesquisa: Estudo da impunidade penal. Município de São Paulo, 1991-1997

O resultado mais surpreendente, até o momento, foi constatar a baixa disposição da agência policial em investigar crimes de autoria desconhecida. A autoria desconhecida está presente na maior parte das ocorrências: são 93,3% dos crimes violentos e 94,93% dos crimes não violentos. A princípio, a inexistência de informações sobre o autor do delito não deveria dissuadir os agentes policiais em suas tarefas de localizar e identificar responsáveis, como aliás recomenda o Código de Processo Penal. Contudo, a análise dos boletins de ocorrência que se converteram em inquéritos policiais sugere que a investigação de crimes de autoria desconhecida constitui exceção na atividade policial.

Distribuição dos boletins que se converteram em inquéritos policiais segundo o tipo de autoria.


Fonte: Livros de Registro de Boletins de Ocorrência e Livros de Registro de Inquérito Policial – 3ª Seccional/ SSP-SP
Pesquisa: Estudo da Impunidade Penal. Município de São Paulo, 1991-1997

Tudo indica que a natureza da autoria é, sob o ponto de vista da agência e dos atores policiais, uma norma orientadora da conduta do que deve prosseguir no fluxo do sistema de justiça e o que deve ser desprezado. Mais do que isso, traduz o entendimento, de parte desse segmento corporativo do sistema de justiça criminal, de como deve operar o aparelho policial, o quanto e quais energias devem ser mobilizadas, o que vale a pena ou não investir. No limite, pode traduzir uma concepção do que, sob a ótica dessa agência e de seus atores, merece ser objeto de punição.

As rotinas de investigação policial parecem estar habituadas e burocraticamente conformadas em investigar crimes de agressores já conhecidos do aparelho repressivo. Agentes e agências policiais limitam seu raio de ação aos estreitos domínios ditados pela cultura organizacional, constituída, modelada e reproduzida, segundo a lógica de “caçar bandidos”. Essas rotinas exploram o óbvio, são pouco permeáveis aos desafios enfrentados não apenas pelo crescimento dos crimes como também pela mudança de qualidade da violência, representada pela emergência do crime organizado e pela explosão de graves violações de direitos humanos. Ao preterir o maciço volume de ocorrências com autoria desconhecida, agentes e agências policiais, contribuem para produzir elevadas taxas de impunidade penal. E, como revelam os resultados da pesquisa, têm elevada responsabilidade institucional nesse processo.

Sérgio Adorno é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-Cepid/USP), coordenador da Cátedra Unesco de Direitos Humanos, Educação para a Paz, Tolerância e Democracia, sediada no Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) e pesquisador I-B do CNPq. Email: sadorno@usp.br.

Wânia Pasinato é doutora em sociologia (USP), pesquisadora sênior do NEV-Cepid/USP e pós-doutoranda junto ao Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, da Unicamp, com apoio da Fapesp. E-mail: waniapasinato@uol.com.br

1 - Cf. Estudo da impunidade penal no município de S. Paulo, 1991-1997, em andamento. Sob coordenação de Sérgio Adorno, Wânia Pasinato e atualmente Cristina Neme, a pesquisa contou com a participação de Carlos Henrique Ferreira, Carlos Eduardo Barbalarga, Cássia Santos Garcia, Cristiane Lamim de Souza Aguiar, Dalila Vasconcellos, Diego Jair Vicentin, Helena Bartolomeu, João Marcelo Gomes, Mariana Mendonça Raupp, Marcelo Santana de Oliveira, Otávio Albuquerque, Renato Oliveira de Faria e Ricardo Rosa, Patrícia Carla e Marcelo B. Nery. Projeto financiado pela Fapesp (NEV-CEPID/USP, www.nevusp.org) e pelo CNPq.

Atenção à Saúde Mental

Em 15 anos, mais de 1,6 mil leitos psiquiátricos foram desativados
Rosemeire Silva , Psicóloga, coordenadora de saúde mental da Secretaria Municipal de Saúde da PBH
É interessante constatar, decorridos apenas 15 anos, como um processo de transformação pode, de fato, ocorrer em meio a um cotidiano de contradições e ser efetivo naquilo a que se propõe. O cenário urbano de Belo Horizonte, por exemplo, foi significativamente alterado. Os hospitais psiquiátricos, hegemônicos no cuidado com o portador de sofrimento mental, foram substituídos por novos serviços que, com decisão e qualidade de atenção, acolhem e tratam em liberdade. Invenção da luta antimanicomial, movimento social que soube precisar com clareza onde se colocava a principal questão ou a maior dificuldade no tratamento da loucura: na exclusão. Não é possível tratar daquele que está fora e invisível socialmente, ou para reafirmar Basaglia, é preciso colocar entre parênteses a doença para cuidar do homem. Os serviços substitutivos introduziram uma novidade na cultura. Até então, nada disso existia e a única referência de que a sociedade dispunha para se relacionar com o portador de sofrimento mental era o hospital psiquiátrico, que segrega e isola os portadores de sofrimento mental, produz valores e reafirma mitos como o da periculosidade e da incapacidade como traços distintivos de uma condição psíquica determinada. Enfim, se conquistou um direito há séculos confiscado, o direito a ser um cidadão.

O direito integral à saúde se articula ao direito ao lazer, à inserção produtiva e, porque não, ao direito à festa e a praça pública. Talvez, a maior conquista que a reforma psiquiátrica alcançou, foi dar acesso à cidade e a cidadania: mais de 1,6 mil leitos psiquiátricos foram desativados e um conjunto de serviços públicos, abertos, territorializados, orientados pela ética de inclusão das diferenças, foi criado. A rede sustenta fora dos hospitais psiquiátricos a maioria dos portadores de sofrimento mental de BH. A política de saúde mental da PBH reafirma o seu compromisso com a cidadania dos portadores de sofrimento mental e faz uma aposta diferente, oferecendo para a cidade a Mostra de arte insensata, na Casa do Conde, de amanhã ao dia 31. Evento cultural abre um novo espaço para o diálogo, para a troca de olhares e afetos entre loucura e razão, arte e política pública, diversão e reflexão.

Para o projeto antimanicomial, a arte é um recurso a mais para se conectar e conviver prazerosamente com seus semelhantes, podendo assim, transitar pela cidade não mais como um doente, ou ainda pior, como pura representação da doença. Mas como alguém capaz de estabelecer trocas e, desse modo, dar testemunho dos inúmeros efeitos possibilitados pelo laço social, seja pela via da arte, enquanto produção artística, seja pelo simples fato de ver-se incluído na família ou por ter amigos. Esta é nossa aposta: dar testemunho dos efeitos criativos e criadores de uma utopia, a sociedade sem manicômios, causa que fez surgir uma política de saúde mental em BH, cuja meta é a criação de um outro lugar social para a loucura e suas produções, que possam vir a contribuir para fazer mais viva e rica a vida na cidade, que sonha ser bela nos horizonte que se abrem a cada dia.

O Início e o Fim da Vida

A fecundação microscópica no tubo de ensaio constitui etapa efêmera e transitória de vida
Dilvanir José da Costa, Professor, doutor em direito civil (UFMG)
Temos demonstrado que, juridicamente, a vida humana só tem início a partir do nascituro, assim denominado o embrião implantado, natural ou artificialmente, no útero da mulher. Os ovos fecundados das aves contêm as gemas, para alimento dos filhotes até o nascimento. Ainda carecem de calor para a gestação. Quanto aos mamíferos, dependem muito mais do alimento repassado pelo sangue das matrizes e também do calor e proteção dos seus ventres contra as intempéries. A fecundação microscópica no tubo de ensaio constitui etapa efêmera e transitória de vida, sem as condições ambientais de sobrevivência e desenvolvimento. Somente o útero materno é capaz de acolher e desenvolver o embrião, transformando o produto químico em fenômeno biológico. Essa metamorfose cresce de importância quando se considera que só em fase posterior as células-tronco embrionárias se transmudam em células nervosas e cerebrais, que produzem a sensibilidade, a inteligência e os demais caracteres do ser racional. Por isso é que o Estado constitucional moderno admite o fim da pessoa totalmente sem cérebro (anencéfalo), inclusive para transplante de órgãos. O embrião in vitro se equipara ao anencéfalo. Não se deve proibir uma experiência inofensiva com embriões in vitro. Vai doer em quem? Só vai contrariar valor resultante de fé ou crença religiosa, que já temos muitos para crer, tal como o mistério da concepção por obra do Espírito Santo. Bastaria o Espírito de Deus, nele insuflado, para que o Cristo se tornasse um iluminado, sem contrariar as leis naturais da concepção.

Ousamos acrescentar que só juridicamente e para efeitos práticos e sociais o início da vida se concentra no nascituro ou embrião uterino. Para fins biológicos e extrapolando todos os limites, “o espermatozóide, o óvulo e o ovo têm vida. Não cabe falar-se em início da vida ao ser fecundado o óvulo, pelo simples e óbvio fato de que os seus componentes já tinham vida”, conclui Marlet Pareta, professor de Medicina Legal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Revista de Direito Civil, SP, nº 61, pág. 136). Admitimos que o direito civil venha a reconhecer a identidade genética do embrião pelo DNA e a atribui-lo ao interessado para gestação, inclusive post mortem, como no caso da viúva do Arkansas (EUA), que o aproveitou depois da morte do marido. Até mesmo embriões órfãos ou anônimos, como no caso do casal chileno morto por acidente aéreo, poderão vir a ser identificados pelos parentes ou adotados e implantados em úteros de terceiros para gestação. Mas tudo isso está coerente com a tese de que o embrião isolado e não implantado na mulher ainda não constitui o início da vida, até que se descubra uma técnica de sua sobrevivência e desenvolvimento extra-uterino. Poderão ser doados para adoção ou para pesquisa científica. A adoção os recupera para a vida nas famílias adotantes; as pesquisas transformam e aproveitam suas células, para o benefício da sociedade e da humanidade.

Saúde Com Inclusão

Há que se respeitar a diversidade humana
Rogério de Oliveira Silva - Presidente do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRPMG)
Os serviços de saúde mental no Brasil precisam melhorar muito. Precisamos de um número maior de centros de atendimento psicossociais (CAPs), de um investimento mais acentuado nas políticas de humanização dos atendimentos, também, de avançar e garantir a permanência dos serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico – que perdurou por décadas –, no qual se “tratavam” os indivíduos portadores de sofrimento mental como inimigos do sistema, legitimando a exclusão, a tortura e a utilização dos “pacientes” enquanto cobaias dos “avanços tecnológicos”. Se avançar é preciso, não devemos, entretanto, admitir retrocessos que nos coloquem a serviço de ganhos financeiros garantidos pela manutenção dos serviços de internação que se baseiam no velho princípio do “poder de uns sobre os outros” – mesmo que, agora, esses serviços estejam revestidos de uma aparência clean, mas que, não obstante, atingem diretamente a integridade afetiva das pessoas.

Nossa aposta encontra na inclusão social o seu lugar privilegiado. Trabalhamos, junto à luta antimanicomial e à reforma psiquiátrica, para a construção de uma sociedade que respeite a diversidade humana, na qual o esforço de pertencimento não seja somente do indivíduo, mas, acima de tudo, da coletividade na qual ele vive. Nesse sentido, a inclusão social de um grupo de pessoas com sofrimento mental deve, obrigatoriamente, ocorrer pelo esforço de todos. Devemos admiti-los enquanto sujeitos dos seus direitos, não condicionando, em nenhuma hipótese, esse vir a pertencer a uma visão de grupos sociais, camadas sociais, profissões ou qualquer pessoa detentora de qualquer poder – mesmo que esse poder seja o conhecimento. Nessa ótica, o sujeito livre – cidadão –, ao confiar na ética profissional de quem quer que seja e confiar em um conjunto de métodos que se colocam a serviço do seu sofrimento, o faz acreditando que a profissão, seja ela qual for, autorizada pela sociedade para atendê-lo, não atuará em causa própria. Em momento algum acusamos ou acusaremos qualquer profissão por algo que a sociedade permite ou permitiu, mas levantaremos sempre a nossa voz para enfrentar “atos” segregadores, excludentes ou inibidores da autonomia humana – independentemente de serem religiosos, políticos, sociais ou científicos.

O dia 18 passado é dedicado à luta antimanicomial, data na qual convidamos a sociedade a refletir sobre a inclusão social dos portadores de sofrimento mental. Buscamos uma sociedade na qual não teremos mais manicômios, mesmo que isso resulte na angústia profissional da perda de poder sobre os pacientes. Queremos uma sociedade sem atos discriminatórios, portanto, inclusiva. E se estamos a caminho dessa construção, nada mais justo do que comemorarmos juntos nossas conquistas.

Fosso Abissal

Será que vale a pena viver em condições degradantes e que aviltam a essência humana?
Robson Sávio Reis Souza - Professor e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC Minas
No dia 10 de dezembro, serão comemorados os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. No limiar do novo século, é preciso repensar a importância desse instrumento jurídico internacional, avaliando conquistas e perspectivas em relação à efetividade dos direitos humanos. O século 20 foi o mais sanguinolento da história da humanidade. Nunca se afrontou tanto a dignidade humana. Por outro lado, se voltarmos nossos olhares para o Brasil, os direitos que interessam certa vertente liberal foram conquistados (liberdade de expressão, locomoção, direitos civis e políticos). Porém, os direitos sociais ainda são um sonho acalentado por milhões de brasileiros.

Não obstante, o mais elementar de todos os direitos ainda é amplamente violado: o direito à vida. No plano teórico, vários debates têm sido travados, ultimamente. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pautou o tema da defesa da vida, desde sua concepção até seu ocaso, na Campanha da Fraternidade deste ano. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa vários temas referentes à vida humana, de grande repercussão ética, como, por exemplo, o uso de células-tronco embrionárias para a pesquisa científica. Em boa medida, as discussões têm se orientado por posições e argumentos morais com alto teor determinista, radicalizando posturas extremas – aceitáveis democraticamente – que distanciam cada vez mais os pontos de vista extremados, mas que, muitas vezes, não levam em consideração pressupostos solidamente construídos ao longo da civilização. O primeiro pressuposto é o antropológico. Aqui está em jogo a visão que temos do homem, da humanidade. A vida humana encerra toda a grandeza e complexidade da natureza. Não está acima ou abaixo das outras formas de vida, mas numa posição que a distingue dos outros seres justamente pela capacidade criativa do ser humano. Portanto, há que ser promovida, defendida e protegida.

O pressuposto ético nos impele a pensar: que tipo de vida escolhemos? Numa sociedade marcada pelo imperativo do consumo, que cristaliza um ethos determinista no qual a felicidade se associa ao ter e não a ser, há que se perguntar: quais os imperativos éticos para se escolher a vida? Aqui constata-se, inequivocamente, que milhões de seres humanos não participam efetivamente dos benefícios sociais e, de certa forma, estão privados de condições adequadas de sobrevivência, com reflexos evidentes na qualidade de vida dessas pessoas. Também há que se considerar o pressuposto teológico. Nele, o que vale é a escolha do Deus da vida. Ou seja, Deus dá a vida às suas criaturas e, sendo dom de Deus, toda a criação deve corroborar na preservação, manutenção e promoção da vida humana, acima de qualquer outro bem e valor. Mas para os cristãos, há um mandamento norteador das ações éticas: que a vida seja plena e abundante.

Por fim, deve-se pautar a discussão por um pressuposto histórico. Ou seja, num mundo marcado por grande pessimismo, violência e opressão de várias formas, como reverter certa visão finalista da felicidade imediata e fugaz, retomando os princípios da solidariedade, fraternidade e justiça social? Assim sendo, não é possível discutir os direitos humanos, em toda a sua totalidade e complexidade, sem antes se perguntar: que vida estamos escolhendo? Ou seja, a escolha pela vida supõe, antes de tudo, várias outras escolhas. Nesse sentido, é preciso optar pela escolha da vida humana com dignidade. Será que vale a pena viver em condições degradantes e que aviltam a essência humana? Portanto, na escolha pela vida e na defesa, proteção e promoção dos direitos humanos somos estimulados a pensar numa nova sociedade que deve ser construída, na qual homens e mulheres tenham condições objetivas de desenvolverem todas as suas potencialidades. Caso contrário, o discurso dos direitos pode-se transformar num discurso meramente liberal, oportunista e inconseqüente. Isso é fácil para aqueles que historicamente tiveram seus direitos transformados em verdadeiros privilégios e que vislumbram novas oportunidades para auferirem outras vantagens pessoais, o que aumenta ainda mais o abissal fosso que separa a parcela dos poucos privilégios da grande multidão de excluídos.

Cotas raciais enfrentam resistência silenciosa no Congresso

BRASÍLIA - O Plenário da Câmara deve votar nesta semana a regulamentação do sistema de cotas em instituições públicas federais de ensino superior. A proposta em discussão reserva metade das vagas dessas universidades para alunos de escolas públicas e garante prioridade para negros e índios. A distribuição seria feita de acordo com a proporção de negros e índios em cada Estado.

Parlamentares a favor da proposta estão otimistas quanto ao futuro do projeto. O presidente da Frente em Defesa da Igualdade Racial, deputado Carlos Santana (PT-RJ), acredita que a aprovação é irreversível. “A base do governo está unida para votar a favor e na Câmara somos maioria”, avalia.

Santana, no entanto, reconhece que ainda há necessidade de se chegar a um consenso em relação ao tema. O parlamentar afirma que há uma oposição silenciosa que não admite a adoção de políticas de reserva de vagas. “Os opositores às cotas não se manifestam”, alega.

A Frente Parlamentar em Defesa da Igualdade Racial é formada por 227 dos 513 deputados que compõem a Câmara. Um número considerável, ainda que não indique a real proporção de parlamentares que defendem esses interesses. O item foi incluído na pauta desta semana por decisão dos líderes partidários.

Talita : Realidade Carcerária, Revolta e Repressão


por Especial Hip-Hop*

A comunidade carcerária é sem dúvidas, uma das populações mais oprimidas, discriminadas, humilhadas e violadas em seus direitos.


Passeata pela paz... ou pelo ódio?
O sistema prisional, muito longe de oferecer algo ligado à educação, existe apenas como depósito de seres humanos a serviço da burguesia, onde o castigo e a punição são contínuos.

Considero o cárcere por si só uma séria violação de condição humana. É impossível almejar algo bom prendendo e excluindo o ser humano.

O cárcere é a vingança do Estado contra os pobres. Contra as pessoas que não se aliam aos seus mecanismos de opressão.

A comunidade carcerária, além do veneno de estar excluída, convive diariamente com as covardias ilegais praticadas por funcionários do Estado (agentes penitenciários, policiais...) que descontam ali seu ódio do povo.

Torturas, humilhações, superlotação, ociosidade, isolamento, castigo, morosidade judiciária, condições precárias de higiene, péssima alimentação, falta de assistência médica e odontológica, doenças, violação de pertences pessoais, etc... são aracterísticas do cotidiano prisional. E isso só gera muito ódio e muita revolta.

Qualquer grupo discriminado/oprimido só consegue ter seus direitos ouvidos e respeitados com sua união e luta.

Assim foi com o movimento de mulheres, com o movimento negro, com o movimento homossexual... E assim foi também com a comunidade carcerária.

A criação de uma organização específica dentre um grupo oprimido é uma reação natural para responder à ação de seus opressores.

Assim, não é estranho saber que existem organizações articuladas dentro das prisões.
(Quem melhor pode saber de suas urgências do que a própria pessoa que sente a desgraça na pele?)

Aqui em São Paulo, os dias 12,13,14 e 15 de maio de 2006 foram totalmente voltados aos acontecimentos exaustivamente explorados (assassinatos,ações,rebeliões, etc,etc,etc).

Acontecimentos esses que só tiveram aquela proporção enorme devido a irresponsabilidade da mídia, que é sensacionalista, mentirosa e sedenta por ibope.

Os meios de comunicação e (des) informação - televisão, internet, rádio, jornal, revista - são formadores de opinião e distorcem a notícia, manipulando-a de maneira que fique do jeito que o expectador mais irá consumir, mais irá gerar lucros.

A sociedade, que é apática e engole tudo sem questionar, fica em choque e se tranca num "toque de recolher" imposto unicamente por ela própria e pela mídia sensacionalista. Ou você acha que se a televisão não existisse o desenrolar seria o mesmo?

A imprensa manipula a notícia para manipular a sociedade.

Você acredita mesmo que foi tudo do jeito que a mídia expôs?

Qualquer pessoa, por mais alheia que seja, tendo um pouco de bom senso, no mínimo questionaria "furos" como uma tal entrevista (forjada) com o Marcola que a TV mostrou (se o cara nunca na vida deu entrevistas, seria naquele momento que iria falar ?),etc, etc.

No mínimo, questionar. E na real, desacreditar

Porque é mentira. A mídia oficial mente. E mente muito, por ser o meio de comunicação sustentado pela classe dominante, cheia de conchavos.

A revolta não foi sem motivo. As rebeliões simultâneas ocorridas em 80 unidades prisionais também não.

** Presos apontam egoísmo do governo como causa da revolta.

Durante muitos anos a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) recebeu informação de direções e funcionários das unidades prisionais que tinham atitudes ditadoras sobre sentenciados, muitas vezes geradas por animosidades pessoais, ou pela ânsia de punir os sentenciados.

No dia 11, apesar de há muito reinar a paz no sistema carcerário, governantes e autoridades ligadas ao sistema realizaram na calada da madrugada a remoção de aproximadamente 800 presos de todas as unidades do Estado para a unidade de Presidente Venceslau 2.

Problema algum haveria em realizar as remoções se não tivessem sido feitas sem o conhecimento sequer das direções e de presos, com benefícios montados e que problema algum de disciplina vinham causando nas unidades em que se encontravam.

E pior, na véspera do Dia das Mães. Ressaltam que impedir o sentenciado de conquistar um benefício, sonhar com a liberdade e de receber o amor de seus familiares é o mesmo que arrancar-lhes pernas e braços.

A revolta ocorrida se deu por essa atitude egoísta do governo e de autoridades que visam apenas seus próprios sucessos políticos e não por reivindicações absurdas como telões e visitas íntimas no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), como noticiam os periódicos. Esclarecem que a revolta se deu no sistema carcerário, onde os únicos prejudicados foram eles próprios.

Quanto na rua, é importante dizer que houveram muitos oportunistas. E pessoas que acabaram de tirar suas diferenças pessoais contra policiais e etc.

E sempre salientar que os sentenciados são seres humanos com anseios, sentimentos e esperanças. Desejam que não seja tirado deles o desejo de sonhar, ter esperança de uma vida melhor. E serem tratados com dignidade e respeito. **

Mas essa realidade não é divulgada, porque para os setores médio/alto não interessa o que se passa atrás das grades.

A sociedade se nega a enxergar que sua (i)lógica inescrupulosa de acumular riquezas gera os por ela denominados "marginais".

Aqui no Brasil, os 10% mais ricos da população são donos de 46% do total da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres - 87 milhões de pessoas - ficam com apenas 13,3%.

Enquanto uma maioria miserável no Brasil enfrenta diariamente a fome, o país abriga a segunda maior frota de helicópteros particulares do mundo.

Para mim, e pra toda periferia, fatos como os que ocorreram não são novidade. O povo pobre é tomado pelo terror todos os dias, tendo suas casas invadidas pela polícia, tomando geral ou porrada nas ruas, entupindo as prisões, não tendo oportunidades para organizar suas vidas, sendo discriminado quando volta pro mundão...

Mas no jogo (que virou) a parte atacada foi aquela que sempre atacou.

Polícia que mata, morreu

E o medo, o tiroteio...invadiram o asfalto. Burguês viveu dias de horror, dias de favela... Sendo que o molho foi temperado com muitos boatos, mais boatos do que fatos.

Mas o fato real é que a repressão governamental/policial/social ganhou campo para ser "justificada" e aceita.

Porque a sociedade contraditória pede "paz" e "harmonia" na base da porrada.
Pede endurecimento das leis. Pede mais polícia. Mais prisões. Mais mortes.
Autoriza o genocídeo do povo pobre. Um problema com origem social vira caso de polícia.

Os sentenciados conhecem a LEP (Lei de Execução Penal) que não é cumprida, sabe de seus direitos, tem suas broncas (com muita motivação) e seu alvo bem direcionado.
O "ataque" foi contra os órgãos policiais e não contra o povo

Mas a força governamental e seu braço armado e fardado viu aí uma ótima ocasião para descaradamente atentar contra a população mais humilde, contra os jovens pobres.

Houve uma reação conservadora por parte da sociedade, que vem pedindo leis ainda piores.

Pedem pena de morte, que é a face mais cruel da (in)Justiça. Querem legitimar a bárbarie. As leis criminais (assim como acontece com todas as leis) são ditadas no afã para satisfazer a opinião pública.

Atualmente, pedem também para "endurecer" (?) o já inconstitucional e absurdo RDD que consiste em manter presos condenados ou presos provisórios (aqueles que ainda nem foram condenados) "que ocasionem subversão da ordem ou disciplina internas" em celas solitárias (isolados) por até 360 dias (podendo expandir esse período por até um sexto da pena). Com visitas semanais de duas pessoas com duração de duas horas e só podem sair da cela por duas horas diárias para o banho de sol, ficam incomunicáveis e sem acesso à fotos, revistas, jornais ou televisão.

Vemos aí que o pote (que sempre existiu e existe na surdina em todos os presídios, isolando o preso no castigo - minúsculo e podre) virou lei, apenas mudando o nome e o aspecto.

Uma lei que é ilegal (pois fere a Constituição federal e atenta contra a Norma Internacional de Respeito aos Direitos Humanos).

Se o próprio sistema carcerário nunca permitiu, não permite e nunca permitirá progresso algum na vida do ser humano, imagine nessas condições.

Puro castigo

Lembro aqui que, em 1983, já era muito bem colocado no escrito "O Crime e a Pena na Atualidade" : "Proíbem-se e castigam-se aquelas ações que infringem algumas das condições constitutivas da ordem jurídica criada pelos dominadores em seu próprio benefício."

Isso é real e pudemos confirmar nas muitas impunidades recentes de gente como: coronel Ubiratan Guimarães; do Massacre do Carandiru. Pimenta Neves; assassino confesso da namorada. Suzane; assassina confessa de mãe e pai. Os vários do Mensalão e por aí segue a interminável lista...

Estamos em ano eleitoral. Não é por acaso a exposição de politiqueiros explorando o máximo essa situação.

Vimos reaparecer figurinhas como Paulo Maluf, coronel Ubiratan Guimarães, Romeu Tuma, Geraldo Alckmin, Fleury, Conte Lopes... e tantos outros que tem em seus currículos participação em crimes cruéis, como o Massacre do Carandiru, grupos de extermínio, rota, torturas e assassinatos na Febem, etc ,etc...

E a mídia oficial (que se diz imparcial) só abre espaço pra esse tipo de gente falar.
Com certeza, na eleição de outubro, o discurso repressivo vai estar em evidência em todas as propagandas.

Na região mais burguesa aqui da cidade se vê faixas de ataque aos Direitos Humanos e de apoio à candidatura desses sanguinários citados.

A burguesia, com medo de ter suas riquezas (adquiridas na base da exploração do povo pobre) ameaçadas, faz campanha para que o Estado realize em nome dela aquilo que tanto querem fazer: sua "limpeza social", tratando os pobres como lixo, varrendo-os pro cemitério.

O poder ostensivo soube explorar e aproveitar bem os acontecimentos. Só que nenhum acordo foi feito com o povo.

O povo está morrendo

Foi instaurado pelos policiais um massacre. Saíram por aí querendo vingança e com o propósito de matar.

Atacam todos os dias, na covardia, gente indefesa, desarmada.

É concreta a volta dos Esquadrões da Morte, os grupos de extermínio. Numa audiência na Assembléia Legislativa dia 16 de maio haviam dois policiais vestindo camiseta com a escrita "Scuderia detetive Le Cocq, esquadrão da morte Brasil".

Nos dia 12,13,14 e 15 de maio a polícia matou oficialmente 79 "suspeitos", em diferentes pontos da cidade. Todos esses assassinatos seguem com o velho discurso de "resistência seguida de morte" que, como sabemos, tira do policial qualquer tipo de culpa.

Só em Guarulhos, na Grande São Paulo, município com denúncias desde 2003 da existência de grupos de extermínio formados por policiais, foram registradas mais de 40 execuções. Em Guarulhos, foi onde morreu um policial.

Em São Mateus, periferia da zona leste da capital, no mesmo ponto de ônibus onde ocorreu a morte de um policial, a polícia encapuzada e em carro sem placa assassinou 5 pessoas.

Coincidência ou vingança?

Foi uma violência covarde, onde a periferia mais uma vez foi o alvo. As famílias desfalcadas seguem mutiladas, revoltadas e ameaçadas.

Dessa vez, o que sempre foi feito na miúda, teve repercussão e foi mostrado. E o pior, foi aplaudido pela classe abastada, que é preconceituosa, conivente e desinformada.

No período dos dias 12 a 15 de maio o IML (Instituto Médico Legal) esteve superlotado com a chegada dos corpos das vítimas da violência policial. Essa superlotação inclusive desencadeou problemas sanitários na conservação dos cadáveres em decomposição, pelo alto número de corpos que chegaram ao local.

Estando evidentes os sinais de execução, foi organizada uma comissão independente formada por pelo menos 10 grupos de defesa dos direitos humanos, para cobrar informações e providências.

Como previsto, foi negada a essa comissão o direito de acompanhar as investigações.

A polícia até agora não entregou todos os documentos solicitados e a Secretaria de Segurança Pública se nega a divulgar os nomes de todos os mortos.

A parte da documentação que foi entregue, se deu após o prazo estipulado.
Mas aposto que não haverá punição alguma aos (ir)responsáveis.
As evidências das execuções são tantas, que o número oficial de 79 mortes inicialmente divulgadas foram agora diminuídas para 31, depois da divulgação de que a maior parte das vítimas assassinadas nem sequer tinham antecedentes criminais.

Essas vítimas foram comprovadamente executadas estando rendidas, com tiros disparados do alto, na cabeça, braços, mãos. O que descarta a hipótese de revide e reforça as provas de execução.

E os corpos das outras vítimas do primeiro informe oficial? Será que foram parar em cemitérios clandestinos? Não duvido.

Como essas mortes se deram dentro de um processo de conflito, há a possibilidade de que acabe sendo pouco investigadas e logo sejam arquivadas e esquecidas.

Vemos exaustivamente, por parte das forças repressoras, o ataque aos Direitos Humanos, que sempre defendeu a vida, principalmente daquelas pessoas que não tem acesso à justiça.

Os Direitos Humanos vem sendo usado como "bode expiatório". Seus militantes vem sendo ameaçados. Recentemente picharam uma suástica no banco em frente à paróquia frequentada pelo padre Julio Lancelloti, grande e notório defensor dos D.H., além de outras várias intimidações a vários outros ativistas.

Querem endurecer a lei também contra as pessoas que lutam por liberdade

Vale dizer que os Direitos Humanos há muito tempo vem denunciando as violações inaceitáveis que ocorrem dentro dos cárceres.

Como "resposta" às rebeliões simultâneas houveram, no mínimo, 18 presos mortos.
Dessas vítimas encarceradas então, nem se ouve falar...

Na Penitenciária de Ribeirão Preto os presos foram obrigados apagar o fogo com o próprio corpo; vem correndo frequentes espancamentos e isolamentos de adolescentes internos na Febem de Vila Maria e de presos das penitas de Lucélia, Campinas e Hortolândia.

As famílias dos presidiários foram absolutamente humilhadas e ameaçadas nas portas dos presídios (onde buscavam informações sobre seus parentes). Foram xingadas, empurradas, dispararam tiros em sua direção.

Mas isso não interessa à sociedade...

Esses "fatos" me recordam os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 nos EUA, onde numa manobra governamental foi decretada uma suposta "guerra ao terror" que desencadeou o terrorismo de Estado visto pelo mundo todo, com intenso e constante ataque aos Direitos Humanos dos povos.

Aqui, como lá, o Estado deu licença para matar. E, na prática, a violência vai aumentar. Nos remete também ao período da ditadura militar.

Enquanto o fator social continuar sendo tratado como "caso de segurança pública" e a sociedade continuar cega, surda, muda e injusta. Invariavelmente o caos irá acontecer, como resultado da revolta e desesperança gerada pela intensa discriminação que sofrem as pessoas excluídas dessa tal sociedade.

São Paulo viu uma guerra sim. A guerra de classes. A velha guerra dos detentores do poder contra o povo injustiçado.

Essa guerra, que massacra o povo pobre, acontece todos os dia sem aparecer na mídia. A história de vida das vítimas do sistema caem para sempre no esquecimento, como se nunca tivessem existido.

É importante e urgente criar alternativas visando uma solução que não defenda o cárcere.

E enxergar que a repressão/violência legislativa/policial é um meio ineficaz para combater a criminalidade, cujas raízes, sabemos todos, está na desigualdade social que impera em São Paulo, no Brasil e no mundo.
Justiça no Cárcere!

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** essa parte sinalizada foi baseada no manifesto divulgado pela comunidade
carcerária**

Talita , 22 anos.
Ativista independente e apartidária na luta contra as prisões e a favor dos
Direitos Humanos. Edita os zines: "Justiça no Cárcere" (com participação da comunidade carcerária) e "Mulher Viva!" (dedicado à libertação feminina)




*Especial Hip-Hop, Espaço para convidados especiais do Hip-Hop a lápis.

Pra Que Discutir com a Madame

Pra que discutir com madame?


por Toni C.*

Bárbara Gancia, peço o direito de resposta pela matéria, ''Cultura de Bacilos'' publicado no dia sexta (16) na Folha de S.Paulo, na esteira da matéria do jornal The New York Times com o título “Governo brasileiro investe em cultura hip-hop” (Clique para ler).


Barbara, pimenta na cultura dos outros

''“De boné de beisebol ao contrário na cabeça, calça abaixada na cintura com a cueca aparecendo e tênis de skatista.'', eu mesmo! Toni C. citado na referida matéria de Lary Rother, é verdade, ''sempre ele''! O dinheiro do contribuinte ser utilizado em nossa cultura é o principal alvo de seu tiroteio. Passa a ser do meu, pois o papel no qual foi impresso esse seu artigo tem isenção fiscal. Também é dinheiro do contribuinte, e deve estar a serviço deste.

Em um país em que o presidente da República ao promover festa junina na Granja do Torto é bombardeado por valorizar a cultura popular. Ver a arte da periferia, ser chamada de cultura de bacilos num diário de grande circulação pode até parecer coisa normal. Mas eu pergunto: a que ponto chegamos?

A madame questiona porque não investir também no axé, sertanejo, ou até a dança da garrafa. Bárbara, informo a você e seus leitores (brasileiros?) que o dinheiro do contribuinte não tem sido utilizado ''para disseminar a cultura hip-hop entre os jovens da periferia''. Até porque os jovens da periferia de maneira geral conhecem e fazem parte desta cultura. O programa concebido pelo Ministério da Cultura, conhecido como Ponto de Cultura, visa potencializar a produção cultural já existente nas comunidades, interligá-las e difundir a cultura digital.

Para se ter idéia do que esta sendo feito nesta área com o dinheiro do contribuinte. Com o mesmo valor de uma única superprodução cinematográfica é possível criar 600 pontos no país onde jovens em situação de vulnerabilidade social se tornam agentes culturais operando filmadora, gravadores, computadores, criando revistas, teatro, músicas, documentários...


Hip-Hop não é Yakult
Mas ai a jornalista questiona: desde quando hip-hop é cultura? A resposta é: A mais de 30 anos quando os elementos foram unidos formando assim a primeira cultural de protesto com abrangência mundial da história da humanidade.

Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de dor
Madame diz que o samba é democrata
É música barata sem nenhum valor

Assim como neste trecho do samba cantado pelo pai da bossa nova João Gilberto. Onde o compositor dialoga com Magdala da Gama que se promoveu no final da década de 50 como crítica de rádio hostilizando o samba. Bárbara Gancia em pleno século 21 reconhece em seu artigo que utilizou de sua ''liberdade'' diária na BandNews FM para rotular o hip-hop como lixo cultural, sexista e violento. Mesmo que tivesse acertado em sua fúria radiodifusa, não lhe parece correto que as pessoas possam se expressar como queiram em nome também da liberdade? Foi esta mesma liberdade que entupiu sua caixa postal tachando-a como racista e facista. Afinal nem eu, nem os autores destes e-mails possuem liberdade na BandNews. Minha mãe costuma dizer: ''Quem fala o que quer, ouve o que não quer.''

A nossa cultura dói nos ouvidos da madame. Nos meus causa orgulho, aumenta a minha auto estima, e elevou minha conciência, me levando a conhecer entre alguns outros Rosa e Machado assim como perceber que a narração em primeira pessoa empregada pelo personagem Brás Cubas em Memória Póstuma tem a mesma construção de ''Estou ouvindo alguém me chamar'' de Racionais Mc's.

Hoje existe nas periferias uma cena literária derivada da cultura hip-hop. Grandes autores e cada vez mais leitores. Legado de Quarto de despejo, o livro Hip-Hop a Lápis é mais um da crescente produção periférica. Tive a honra de organizá-lo e hoje ele é um desses Pontos de Cultura.

Bom, pelo menos em um aspecto concordamos, quando você afirma: ''Não entendo muito de comércio''. Neste particular você realmente parece insegura, mas ainda assim arrisca perguntar. ''... será que produzir uma legião de grafiteiros e de DJs é ''oportunidade de negócio''? E eu arrisco responder:

Madame, sou morador da periferia de Carapicuíba, zona oeste de São Paulo, estou escrevendo a você a partir do Alto Vera Cruz, maior comunidade de Belo Horizonte. De um computador do tele-centro no grupo cultural NUC, digito cada palavra. Só mesmo o hip-hop pra me trazer pra cá. Estamos realizando o encontro da Nação Hip-Hop Brasil entidade da qual faço parte. E ter contato com pessoa do país inteiro nos dá outra perspectiva, pois percebemos que o que nos falta não é capacidade, mas sim oportunidade.

O espanto que os gênios musicais do hip-hop lhe causaram quando você percebeu que estavam ligados ao tráfico de drogas, também me causa. Pois incentivar a produção cultural e o acesso a informações é justamente um dos meios para criar alternativas ao tráfico de drogas. E isso o hip-hop tem feito. Sem contar que só existe tráfico por existir consumidor. E quem tem dinheiro para manter a segunda maior indústria do planeta Terra, a industria do tráfico de drogas?

Poeta Sérgio Vaz, o sindico: ''Alô, ministro Gil! Não seria mais produtivo ministrar, nos casarões, um único livro de Gilberto Freyre, ''Casa grande e senzala'' do quê dar ouvidos e força a essa jornalista, que mais parece uma paródia tupiniquim da Ku Klux Klan?''

De toda forma, não posso deixar de dizer que admiro sua coragem, madame. Sendo assim, faço um convite para que conheça os trabalhos que estamos desenvolvendo nas mais diversas regiões do país. Poderíamos aproveitar esta sua visita às comunidades para que nos conceda uma entrevista. Espero que a coragem não desapareça. Como aconteceu com o maestro Júlio Medáglia, ou com o escritor Maurício Mirisola.

Cultura de Bacilos? É pertinente madame...

O rap é um transmissor do vírus libertário, que fortalecido reproduziu, como você mesmo diz: Uma legião.

E eu também sou portador!

Obs.: Até a publicação deste artigo, o direito de resposta não foi concebido pelo jornal para ler o artigo de Barbara Gancia na Folha de São Paulo de hoje (16).




*Toni C., DJ e produtor. Autor do vídeo documentario "É Tudo Nosso! O Hip-Hop Fazendo História", organizador do livro "Hip-Hop a Lápis" e membro da Nação Hip-Hop Brasil e da equipe do Portal Vermelho.

Governo Brasileiro Investe no Hip Hop

´New York Times` elogia Gil e pontos de cultura do hip-hop


Governo brasileiro investe em cultura hip-hop, anuncia o The New York Times desta quarta-feira (14). O artigo é do correspondente do jornal, Larry Rohter, que em 2004 se envolveu num episódio polêmico ao acusar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de beber demais. Desta vez, Rother defende o programa do governo e o "reverenciado" ministro Gilberto Gil (Cultura), ouve o antropólogo musical Hermano Vianna, o rapper Aliado G, da Nação Hip-Hop, e Toni C., do ponto de cultura Hip-Hop a Lápis, hospedado no Vermelho. Só elogios. Veja a íntegra.


Rappers com favela ao fundo, na foto do NYT

Em uma sala de aula de um centro comunitário próximo a uma favela de São Paulo, um professor tarimbado na vida desta cidade fornece a doze jovens alunos dicas para que eles aperfeiçoem as suas técnicas de grafite. Um andar abaixo, em um pequeno estúdio a prova de som, um outro instrutor ensina um grupo de jovens aspirantes a rappers a operarem equipamentos de vídeo e de gravação digital.


Latente criatividade dos pobres


Este é um dos Pontos de Cultura do Brasil, o fruto de um programa oficial do governo que está ajudando a disseminar a cultura do hip-hop em uma vasta nação de 185 milhões de habitantes. Com a concessão de pequenas doações de cerca de US$ 60 mil a vários grupos comunitários dos entornos das cidades brasileiras, o Ministério da Cultura espera canalizar para novas formas de expressão aquilo que vê como a latente criatividade dos pobres do país.


O programa, concebido em 2003, é uma iniciativa do ministro brasileiro da Cultura, Gilberto Gil, que falará sobre cultura digital e tópicos correlatos nesta quarta-feira, na Conferência Sul/Sudoeste de Música e Mídia, em Austin, no Texas. Embora seja atualmente um dos astros mais reverenciados da música popular do país, Gil, 64, foi muitas vezes boicotado no início da sua própria carreira, de forma que sente certa afinidade pela emergente cultura hip-hop local.


"Conexão com o mundo maior"


"Esses fenômenos não podem ser encarados negativamente, já que eles envolvem grandes contingentes da população para os quais tais fenômenos se constituem na única conexão com o mundo maior", disse o ministro em uma entrevista em fevereiro. "Um governo que for incapaz de perceber tal coisa não terá a capacidade de formular políticas suficientemente inclusivas para manter os jovens afastados da criminalidade ou impedir que fiquem socialmente isolados".


"Como resultado dos Pontos de Cultura e outros programas similares, atualmente vemos jovens que estão se tornando designers, que ingressam na mídia, que são cada vez mais utilizados pela televisão e escolas de samba e que revitalizam bairros degradados", afirmou Gil. "Esta é uma visão diferente do papel do governo, um novo papel".


Para o ministro, a cultura hip-hop consiste de quatro elementos: MCs (rappers), DJs, dançarinos de break e artistas do grafite. No Projeto Casulo, um centro comunitário daqui, que fica em uma rua estreita e sinuosa ao pé de uma favela, todas as quatro formas artísticas são ensinadas a dezenas de jovens moradores.


"Em nome do rap, do funk ou do brega"


"Este programa democratizou realmente a cultura", disse Guine Silva, um rapper de 32 anos que é diretor do centro, durante uma visita a esta construção simples de concreto. "Nós nos transformamos em um laboratório multimídia. A obtenção da verba e do equipamento de estúdio permitiu que nos tornássemos uma espécie de fábrica de hip-hop".


Embora os vínculos com a música sejam fortes e profundos na cultura brasileira, a idéia de usar o dinheiro do contribuinte para encorajar o rap e a arte do grafite não é universalmente aceita. Mas como a capacidade de avaliação musical de Gil é altamente respeitada, o grau de ceticismo e de resistência em relação a essa idéia é menor do que poderia se esperar.


"Gil ainda tem que lutar contra outros setores do governo para defender coisas que esses setores consideram lixo alienante, mas ele está disposto a fazer tal coisa, sejam em nome do rap, do funk ou do brega", um outro estilo de música considerado vulgar e típico das classes baixas, afirma Hermano Vianna, escritor e antropólogo que trabalha com programas de cultura digital. "Ele olha para esse tipo de coisas não com preconceito, mas sim como se elas fossem oportunidades de negócios."


Rap brasileiro, altamente politizado


Por outro lado, alguns importantes expoentes da cultura hip-hop no Brasil, como o rapper Mano Brown e o escritor Ferrez, demonstram ceticismo e preferiram se manter distantes do programa do governo. Outros estão participando, mas reclamam da burocracia envolvida. "A idéia é ótima porque ela proporcionou um grau de reconhecimento que não tínhamos antes", diz o rapper Aliado G., presidente de uma entidade chamada Nação Hip-Hop Brasil. "Mas as pessoas se frustram quando um projeto delas é aprovado e elas não conseguem o dinheiro porque não sabem como lidar com toda a papelada burocrática".


O rap brasileiro, pelo menos na forma como se desenvolveu nos bairros pobres desta que é a maior cidade do país, tende a ser altamente politizado e a desdenhar as letras que contem vantagens sobre riqueza e conquistas sexuais. Em contraste com isso, o movimento funk no Brasil, também importado dos Estados Unidos, mas centralizado no Rio de Janeiro, não tem pudores em enaltecer o sexo, a ostentação e a violência.


"Quando os grupos de rap dos Estados Unidos vêm para cá e procuram ser ostentosos ou fazer encenações de gangues, são vaiados no palco", diz Silva. "Nós sentimos uma afinidade por Chuck D e o Public Enemy" - conhecidos pelos seus comentários políticos - "mas não admiramos nem um pouco pessoas como Snoop Dogg e Puff Daddy".


Uma indústria da cultura no setor informal


Como as estações de rádio comerciais tradicionais e editoras têm manifestado pouquíssimo interesse pela música e pela poesia produzidas pelos novos artistas de hip-hop - ou então procuram impor cláusulas contratuais muito severas - os rappers criaram os seus próprios canais para distribuir o seu trabalho. Isso envolve a venda pessoal de discos e livros nas ruas, bem como a divulgação de shows e a apresentação dos trabalhos em redes de estações de rádio comunitária de baixa potência, mas conectadas entre si.


"Existe toda uma indústria sendo construída no setor informal", explica Vianna. "Se fosse para aplicar todas as leis existentes hoje em dia, nenhum produtor seria capaz de lançar uma gravação vinda de uma favela. Assim, é preciso criar um novo modelo, e Gil está disposto a fazer isso".


No Projeto Casulo, o programa Pontos de Cultura produziu dois documentários sobre problemas de moradia, com trilha musical de rap, que são transmitidos pelas redes comerciais de televisão. O centro também gerou uma radionovela, um fanzine e um jornal comunitário, e pretende a seguir criar uma estação de rádio online para divulgar as obras de rap que os seus músicos e aqueles de centros comunitários similares compuseram e gravaram.


Hip-Hop a Lápis, o livro e o ponto de cultura


Além disso, a doação do Ministério da Cultura permitiu que a Nação Hip-Hop Brasil lançasse um livro chamado Hip-Hop a Lápis, uma coletânea de letras de rap. Depois que a primeira edição, composta de 2.000 cópias, foi vendida rapidamente em 2005, tendo sido indicada para um prêmio literário, uma editora convencional manifestou interesse suficiente para negociar um acordo para a publicação das edições subseqüentes.


"Nunca antes tínhamos visto a nossa história ser narrada em um livro, e no início as editoras não nos levaram a sério", conta Toni C., um dos editores e autores da coletânea. "Os livros sempre foram usados como uma arma contra nós, e as pessoas não sabiam que existia algo como a literatura hip-hop. Agora elas sabem".
A lei brasileira oferece isenções fiscais às companhias que contribuem para empreendimentos culturais como filmes, balés e mostras de arte. Agora a música rap alcançou um status similar, e, como resultado disso, algumas das maiores corporações do país passaram a subscrever gravações e shows de hip-hop.


Em um evento recente em Campinas, uma cidade de um milhão de habitantes que fica a uma hora de carro de São Paulo, entre os patrocinadores estavam uma empresa de energia elétrica, um banco, uma empresa de construção civil e um conglomerado industrial. Enquanto um grupo de dançarinos de break exibia os seus movimentos mais ousados, DJs e MCs protestavam contra a desigualdade social, econômica e racial com letras como: "A realidade é sempre dura/para aqueles que têm a pele escura/se você não tiver atenção/acabará no camburão".


"Demorou um pouco até que as companhias despertassem para o potencial oferecido pelo hip-hop", afirma Augusto Rodrigues, executivo da companhia de energia elétrica e diretor do centro cultural onde ocorreu o show. "Mas existe uma fome por programas culturais como esse, no qual pela primeira vez em 20 anos a ideologia da periferia pode se expressar".


Fonte: The New York Times; intertítulos do Vermelho

Cervejas : Desceu Quadrado

Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo
Desceu quadrado

A decisão do Congresso de protelar a restrição aos
anúncios de cerveja na TV é uma vitória do atraso

No projeto do governo que pretende restringir a publicidade de cerveja na televisão embutia-se um confronto entre o progresso e o atraso, a civilização e a barbárie, o interesse público e os interesses privados. Encaminhado ao Congresso em regime de urgência, estava na semana passada na iminência de ser posto em votação quando um acordo entre as lideranças partidárias, ao retirar-lhe a urgência, remeteu-o para as calendas gregas. Venceram o atraso, a barbárie e os interesses privados. Nos vídeos brasileiros a cerveja continuará jorrando, generosa e farta, em mensagens que identificam seu consumo à alegria, à jovialidade, ao sucesso, à beleza e às mulheres de biquíni.

O projeto visava a corrigir uma anomalia criada pela lei de 1996 que proibiu o anúncio de bebidas alcoólicas antes das 21 horas. A cerveja ficara de fora sob a justificativa de ter teor alcoólico menor. Não é preciso ser um profissional da saúde para concluir que o que importa não é o teor alcoólico, mas a quantidade de bebida ingerida. Falou mais forte, no entanto, o lobby da cerveja, representado pela coligação que reúne fabricantes, agências de publicidade e emissoras de televisão. Essa mesma coligação venceu outra vez na semana passada. Num Congresso coalhado de proprietários de emissoras de TV (eta, Brasil!), encontrou amparo amigo em deputados como o líder do PMDB, Henrique Alves (de uma família dona de concessões no Rio Grande do Norte), e Antonio Carlos Magalhães Neto (idem na Bahia).

O combate ao abuso do álcool é uma das principais bandeiras do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Uma de suas iniciativas foi a tentativa de proibir a venda de bebidas nos bares e restaurantes à beira das estradas. Venceu apenas pela metade, pois no Congresso abriu-se uma exceção para bares e restaurantes situados em áreas urbanas. A tentativa de fazer com que a publicidade de cerveja não se espraiasse tão à vontade, lotando os intervalos do futebol, nos fins de semana, ou se imiscuindo nos noticiários e nas novelas, nos horários de maior audiência, era outra de suas prioridades. O argumento do ministro é a saúde pública. Este é o país dos 35 000 mortos por ano em acidentes de automóvel, em grande parte causados por embriaguez do motorista. É também o país dos assassinatos fúteis no bar e da violência doméstica, para os quais o álcool dá contribuição decisiva.

Nas últimas semanas o lobby da cerveja se fez presente em anúncios nos jornais e na TV. O anúncio da TV começava com uma falsidade ("Querem proibir a publicidade de cerveja", dizia, quando na verdade se tratava de restringir sua veiculação) e avançava pela argumentação de que a publicidade nada tem a ver com a embriaguez dos motoristas ou a violência dos bêbados. No mundo angélico assim descrito, ninguém bebe porque viu anúncio da bebida. Ou seja: a publicidade não provoca efeitos. É um mero exercício platônico, inócuo como comprimido de farinha. O golpe de graça estava guardado para o grand finale, quando, em defesa da publicidade da cerveja, invocava-se a liberdade de expressão. Nada menos do que o nobre conceito, flor do Iluminismo, da liberdade de expressão – como se pairasse a ameaça de censura a algum evento ou se tramasse a repressão a alguma corrente de opinião.

Num anúncio nos jornais, em que também se insistia na tônica da inocuidade da publicidade – pintada como tão responsável pelos bêbados quanto os abridores de garrafa (!) –, o que estaria em jogo seria "o direito sagrado" de "se informar e formar a sua opinião". Como se os anúncios de cerveja tivessem algo a informar além da preferência do Zeca Pagodinho, e como se à vista deles se pudesse formar opinião mais complexa do que escolher o mais revelador entre os biquínis das moças.

Os anúncios foram elaborados pela Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap). Entidades da classe ou lideranças publicitárias também se opuseram, um ano e meio atrás (e também invocando o santo nome da liberdade de expressão em vão), à lei que proibiu os outdoors em São Paulo. Foi a melhor coisa que aconteceu na paisagem da cidade em muitos anos e conta com amplo apoio da população. Com a manobra da semana passada os anúncios de cerveja sem restrição de horário ganharam uma sobrevida talvez de anos. Mas é inevitável que um dia não mais se apresentarão sem freios. Fazem parte da consciência do nosso tempo as idéias de que não se deve estimular o consumo de produtos como cigarros e bebidas alcoólicas, especialmente junto às crianças e aos jovens, e de que a publicidade na TV é um dos mais poderosos estímulos, especialmente junto às crianças e aos jovens.

Há alguns anos também os anúncios de cigarro campeavam soltos. Fumava-se nos programas e os estúdios ficavam cheios de fumaça. Anúncios de cigarro, que costumavam ser tão glamourosos como são hoje os de cerveja, ou apresentadores puxando suas tragadas no ar hoje soariam chocantes. Não está longe o dia em que também os anúncios de cerveja soarão chocantes.